A Crônica
Crônica é uma narrativa curta que tem como tema fatos da vida cotidiana, muitas vezes abordados com humor e simplicidade.
No Brasil, a produção de crônicas é bastante vasta. Nessa área, destacam-se escritores como Rubem Braga. Fernando Sabino. Stanislaw Ponte Preta, Moacyr Scliar entre outros.
Vejamos alguns conceitos a respeito deste gênero, segundo alguns desses grandes escritores.
"Muita gente une pergunta se tudo de que falo acontece mesmo, ou se invento. Vivo me inspirando em histórias de amigos, em coisas de que ouço falar. Na realidade, enfim. Mas também costuro acontecimentos entre si, dou um toque pessoal, exagero, busco o humor que faz parte da vida na cidade grande”. (Walcyr Carrasco _ ‘O golpe do aniversariante e outras crônicas)
"A crônica é o espaço em que o escritor transita pelo cotidiano, discute eventos, opina, reivindica, ironiza, conta casos, expõe emoções. Lirismo, humor, indignação, meditação - tudo vale.”
“Muitas vezes o escritor usa aquele espaço para testar o efeito de um texto que depois incluirá em soa obra maior”. (Ivan Ângelo — ‘O comprador de aventuras e outras crônicas’)
O pomar dá literatura é composto de diferentes espécies: a poesia, que, pela sua delicadeza, comparo à uva; o romance, que, pela sua densidade, me lembra uma jaca (não da para comer uma jaca de uma vez); o conto, que, para ter qualidade, precisa ser redondo como uma lima; a novela, que, a meio caminho entre o conto e o romance, poderia ser um melão; e a crônica, que, pela variedade e popularidade, equivale à laranja.
O conto, como uma lima, tem a casca mais fina e pode até ser agradável a um paladar delicado. A crônica, casca mais grossa, não requer tantos cuidados para a frutificação. Cresce em produções espontâneas, em jornais, revista, mas nem por isso perde seu valor nutritivo: contém todas as vitaminas necessárias à formação de um bom leitor.
As crônicas, como as laranjas podem ser doces ou azedas: consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa, ou virar suco, espremida em sala de aula. Sentirá seu fino sabor quem souber apreciá-la de maneira sensata."
(Carlos Eduardo Novaes _ ‘A cadeira, do dentista e outras crônicas’)
“A crônica não tem a pretensão de ensinar coisa, alguma a alguém. Como cronista quero apenas convidar você, leitor, a descobrir um mundo maravilhoso, dentro do mundo em que você vive. Este é o mundo da leitura. É ai que estão guardadas as melhores crônicas, as melhores histórias. Está à disposição de qualquer um, mas nem toda gente sabe que ele existe, e por isso não pode sentir o prazer que ele dá”.
“Crônicas são histórias que podem ter acontecido com todo mundo: até com você mesmo com pessoas de sua família ou com seus amigos. Mas uma coisa é acontecer, outra coisa é contar, escrever aquilo que aconteceu. Então você notará, ao ler a narração do fato, como ele ganha interesse especial”. (Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Braga — Para gostar de ler volume 01- Crônicas)
"A crônica não tem a pretensão de durar, uma vez que é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa; publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar algum caixote”.
Sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se adaptou ao estilo despreocupado e feliz do povo brasileiro.
“Ao longo do tempo foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (jornalismo) para ficar sobretudo com a de divertir.” (Antônio Candido _ estudioso da Literatura Brasileira)
Características da Crônica
· A crônica nasceu nas páginas dos jornais e revistas.
· E uma narrativa curta que tem como tema fatos da vida cotidiana, muitas vezes abordados com humor e simplicidade.
· Apresenta um titulo que, na maioria das vezes, revela a idéia principal do texto.
· A crônica parte de um fato cotidiano vivido por personagens em determinados lugares (num bar, num ponto de ônibus, numa festa). Por essa razão, o tempo e o espaço são limitados, curtos.
· Pode apresentar os elementos básicos da narrativa: fatos, personagens, tempo e lugar.
· Tem por objetivo divertir e/ou refletir criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos, as tradições e os hábitos de um povo.
· Pode apresentar narrador-observador ou narrador-personagem. O uso do narrador em 1ª pessoa faz com que, muitas vezes, tenhamos a impressão de que foi o autor da crônica que viveu a situação narrada. Além disso, esse recurso faz com que haja uma cumplicidade, entre o leitor e o escritor.
· Em relação à linguagem, a crônica está mais próxima dos textos literários que dos jornalísticos.
Os fatos são narrados de forma pessoal, subjetiva, sob o olhar do cronista. A variedade lingüística adotada na crônica é a variedade informal, simples, e direta, próxima do leitor.
· Geralmente os personagens se comunicam através de diálogos, fazendo uso então do discurso direto. Em geral, ele é ágil e direto, justamente para dar uma idéia de movimento, ação, dinamismo.
O emprego de algumas figuras de linguagem também traz um dinamismo ao texto, como por exemplo, o uso da ironia, da hipérbole. A critica é outro recurso empregado a favor da linguagem e da criatividade dos textos.
Bibliografia:
1- “Aulas de Redação” (Maria Aparecida Negrinho), ed. Ática
2- “Texto e Interação” (William Roberto Cereja), ed. Atual
3- "Leitura e Produção de Texto” (Patrícia Moreli), ed. Quinteto Editorial
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O Homem Nu
Fernando Sabino
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.
Agradeço a Cristhiano Rocha Pereira pela lembrança.