quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Encontro de Dinamizadores - NTE-Palmeiras

Cavalo e o burro, ilustração de Frances Barlow, metade do século XVII

O cavalo e o burro (Monteiro Lobato)

O cavalo e o burro seguiam juntos para a cidade. O cavalo contente da vida, folgando com uma carga de quatro arrobas apenas, e o burro — coitado! gemendo sob o peso de oito. Em certo ponto, o burro parou e disse:

— Não posso mais! Esta carga excede às minhas forças e o remédio é repartirmos o peso irmãmente, seis arrobas para cada um.

O cavalo deu um pinote e relichou uma gargalhada.

— Ingênuo! Quer então que eu arque com seis arrobas quando posso tão bem continuar com as quatro? Tenho cara de tolo?

O burro gemeu:

— Egoísta, Lembre-se que se eu morrer você terá que seguir com a carga de quatro arrobas e mais a minha.

O cavalo pilheriou de novo e a coisa ficou por isso. Logo adiante, porém, o burro tropica, vem ao chão e rebenta.

Chegam os tropeiros, maldizem a sorte e sem demora arrumam com as oito arrobas do burro sobre as quatro do cavalo egoísta. E como o cavalo refuga, dão-lhe de chicote em cima, sem dó nem piedade.

— Bem feito! exclamou o papagaio. Quem mandou ser mais burro que o pobre burro e não compreender que o verdadeiro egoísmo era aliviá-lo da carga em excesso? Tome! Gema dobrado agora…

***
Em: Criança Brasileira, Theobaldo Miranda Santos, Quarto Livro de Leitura: de acordo com os novos programas do ensino primário. Rio de Janeiro, Agir: 1949.
VOCABULÁRIO:
Folgando: descansando, alegrando-se; excede: ultrapassa; arque: aguente; tropica: tropeça; maldizem: lamentam; refuga: rejeita.

José Bento Monteiro Lobato, (Taubaté, SP, 1882 – 1948). Escritor, contista; dedicou-se à literatura infantil. Foi um dos fundadores da Companhia Editora Nacional. Chamava-se José Renato Monteiro Lobato e alterou o nome posteriormente para José Bento.

Fonte: http://peregrinacultural.wordpress.com/2009/06/25/o-cavalo-e-o-burro-fabula-texto-de-monteiro-lobato/

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Conteúdo Programático

3ª SÉRIE

1. BREVE RETROSPECTIVA
1.1. Grandes mestres da sociologia
1.1.1. Jean-Jacques Rousseau
1.1.2. Augusto Comte
1.1.3. Karl Marx
1.1.4. David Émile Durkheim
1.1.5. Max Weber
1.1.6. Gilberto Freire
1.2. Por que estudar Sociologia
1.3. Conceitos básicos: relações sociais e políticas
1.3.1. Ação e interação social
1.3.2. Normas e sanções sociais
1.4. Ciência da Sociedade
1.5. Sistemas Econômicos
1.5.1. A pobreza. a fome, a questão ambiental, os conflitos raciais, étnicos e religiosos e outras questões.


2. INSTITUÇÕES SOCIAIS
2.1. Rede de relações sociais
2.1.1. Interação social
2.1.2. Papéis sociais
2.1.3. identidades sociais
2.2. Interdependência das instituições
2.3. Características fundamentais
2.3.1. exterioridade
2.3.2. objetividade
2.3.3. coercitividade
2.3.4. autoridade moral
2.3.5. historicidade
2.4. Principais instituições
2.4.1. Família
2.4.1.1. modelo nuclear e patriarcal
2.4.1.2. movimentos de emancipação feministas
2.4.1.3. inversão de papéis
2.4.1.4. relações de trabalho
2.4.2. Escola
2.4.2.1. Definição e finalidades
2.4.2.2. Objetivos da educação
2.4.2.3. Instituições educacionais
2.4.2.4. Educadores, educandos e outros grupos
2.4.3. Estado
2.4.3.1. Teorias sobre a origem e a finalidade do Estado
2.4.3.2. Conceito no campo do Direito, da Política e da Economia
2.4.3.2.1. soberania
2.4.3.2.2. estrutura de funcionamento
2.4.3.2.3. sistemas de poder
2.4.3.2.4. formas de governo
2.4.3.2.5. regimes políticos
2.4.3.2.6. relações entre o público e o privado
2.4.3.2.7. dinâmica entre centralização e descentralização do poder
2.4.3.3. Formas históricas de Estado
2.4.3.3.1. Absolutismo
2.4.3.3.2. Liberal
2.4.3.3.3. Democrático
2.4.3.3.4. Socialista
2.4.3.3.5. Elfare-State (Bem-Estar)
2.4.3.3.6. Neoliberal
2.4.3.4. Dinâmica política
2.4.3.4.1. O Estado e a sociedade
2.4.3.4.2. Partidos Políticos
2.4.3.4.3. Grupos de interesses e movimentos sociais
2.4.3.5. Relações entre Estado e Sociedade
2.4.3.5.1. exercício da democracia
2.4.3.5.2. legalidade e legitimidade
2.4.3.5.3. direitos do cidadão
2.4.3.5.4. formas de participação política
2.4.3.5.5. movimentos sociais e a construção da cidadania

3. TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO
3.1. Teoria
3.1.1. das etapas do crescimento econômico
3.1.2. da modernização
3.1.3. da dependência
3.2. Indicadores do desenvolvimento
3.2.1. Vitais
3.2.2. Econômicos
3.2.3. Sociais
3.2.4. Políticos

4. FATOS SOCIAIS
4.1.1. Cultura
4.1.2. Civilização
4.1.3. Identidades sociais
4.1.4. Ideologia
4.1.5. Identidade cultural
4.1.6. Meios de comunicação de massa
4.1.7. Alienação e conscientização
4.1.8. Vida social
4.1.9. Linguagens
4.1.10. Comunicação e interação

5. MUDANÇA SOCIAL
5.1. Conceito
5.2. Fatores contrários e favoráveis
5.3. Conseqüências
5.3.1. reforma
5.3.2. revolução

6. A REALIDADE DA VIDA COTIDIANA
6.1. Objetivação
6.1.1. exteriorização da realidade
6.1.2. institucionalização e configuração de papéis sociais
6.1.3. legitimação dos universos simbólicos e seus mecanismos de manutenção
6.2. Subjetivação
6.2.1. interiorização da realidade
6.2.2. processo de socialização

7. OS MODOS DE VIDA NA ATUALIDADE
7.1. A padronização mundial dos modos de vida pelo processo de globalização da sociedade.
7.1.1. As semelhanças das paisagens mundiais (as cidades, os estabelecimentos comerciais, a moda):
7.1.2. A sociedade de consumo (o ritmo de vida, o papel da mídia na padronização de usos e costumes).
7.2. A dinâmica da sociedade mundial:
7.2.1. O processo produtivo da sociedade;
7.2.2. Desigualdades sociais;
7.2.3. A questão do desenvolvimento e subdesenvolvimento;
7.2.4. Os movimentos migratórios;
7.2.5. O crescimento e a concentração espacial da população.
7.3. O espaço urbano-rural como resultado do modo de vida capitalista:
7.3.1. O processo de urbanização:
7.3.2. A vida urbana na atualidade: (metrópole, conurbação, rede urbana, estrutura populacional, crescimento vegetativo, migração, população economicamente ativa);
7.3.2.1. A organização territorial da indústria;
7.3.2.2. Industrialização e urbanização;
7.3.2.3. Os problemas ambientais urbanos.
7.3.3. A vida rural na atualidade.
7.3.3.1. As formas de organização da produção no espaço rural (extrativa, agrícola, industrial):
7.3.3.1.1. Cultura comercial e de subsistência; Produção extensiva e intensiva;
7.3.3.1.2. As relações de trabalho: A estrutura fundiária.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Negrinha (Monteiro Lobato)

Negrinha
Monteiro Lobato


Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.

— Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...

Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

— Sentadinha aí, e bico, hein?

Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.

— Braços cruzados, já, diabo!

Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.

Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.

— Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

— Venha cá!

Negrinha aproximou-se.

— Abra a boca!

Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!

— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.

— Sim, mas cansa...

— Quem dá aos pobres empresta a Deus.

A boa senhora suspirou resignadamente.

— Inda é o que vale...

Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

— É feita?... — perguntou, extasiada.

E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo.

— Nunca viu boneca?

— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?

Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

— Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

— Pegue!

Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

Assim foi — e essa consciência a matou.

Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.

Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas.

Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...

E tudo se esvaiu em trevas.

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

— “Como era boa para um cocre!...”





Monteiro Lobato, natural de Taubaté (SP), nasceu em 18/04/1882. É uma das figuras excepcionais das letras brasileiras. Jornalista, contista, criador de deliciosas histórias para crianças, suscitador de problemas, ensaísta e homem de ação, encheu com seu nome um largo período da vida nacional. Com a publicação do livro de contos "Urupês", em julho de 1918, quando já contava com 36 anos de idade, chama para o seu talento de escritor a atenção de todo o país. Cita-o Ruy Barbosa, em discurso, encontrando no seu Jeca Tatu um símbolo da realidade rural brasileira. Lança-se à indústria editorial, publica livros e mais livros — "Onda Verde", "Idéias de Jeca Tatu", "Cidades Mortas", "Negrinha", "Fábulas", "O Choque", etc. Fracassa como editor, ao lançar a firma Monteiro Lobato & Cia., mas volta com a Companhia Editora Nacional, ao lado de Octales Marcondes, e triunfa. Tenta a exploração de petróleo, e acaba na cadeia, perseguido pela ditadura de Getúlio Vargas. Não só escreve, como traduz sem pausa, dezenas e dezenas de livros, especialmente de Kipling. Uma vida cheia. E uma grande obra, que lhe preservará o nome glorioso. Foi um grande homem, um grande brasileiro e um dos maiores escritores — em todo o mundo — de histórias para crianças. Basta dizer que, no período de 1925 a 1950 foram vendidos aproximadamente um milhão e quinhentos mil exemplares de seus livros.

Era, de fato, um ser plural: escritor precursor do realismo fantástico, escritor de cartas, escritor de obras infantis, ensaísta, crítico de arte e literatura, pintor, jornalista, empresário, fazendeiro, advogado, sociólogo, tradutor, diplomata, etc. Faleceu na cidade de São Paulo (SP), no dia 04 de julho de 1948.



O texto acima foi publicado originalmente em livro do mesmo nome, tendo sido selecionado por Ítalo Moriconi e consta de "Os cem melhores contos brasileiros do século", editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 78.





quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Estudando o processo de comunicação

No mundo non me sei parella,
Mentre me for’ como me vai,
Ca já moiro por vós – e ai
Mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraia
Quando vos eu vi em saia!
Mão dia me levantei,
Que vos entorn non vi fea!

E, mia senhor, des aquel di’, ai!
Me foi a mi muin mal,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
D’aver eu por vós guarvaia,
Pois eu, mia senhor, d’alfaia
Nunca de vós ouve nem ei valia d’ua Correa.
(Paio Soares Taveirós)


No mundo ninguém se assemelha a mim (parelha: semelhante)
enquanto a minha vida continuar como vai
porque morro por vós, e ai
minha senhora de pele alva e faces rosadas,
quereis que vos descreva (retrate)
quando vos eu vi sem manto (saia: roupa íntima)
Maldito dia! me levantei
que não vos vi feia (ou seja, a viu mais bela)

E, minha senhora, desde aquele dia, ai
tudo me foi muito mal
e vós, filha de don Pai -
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós guarvaia (guarvaia: roupa luxuosa)
pois eu, minha senhora, como mimo (ou prova de amor)
de vós nunca recebi
algo, mesmo que sem valor. (correa: coisa.sem valor)


ps. colaborador/Gustavo